Eu sei que disse que se o barco fosse a minha única opção de moradia em Port-au-Prince, eu estaria ferrada. Não volto atrás no que disse, mas tenho que confessar que ao final tive que sucumbir. Juro que explorei várias opções antes de utilizar este último recurso habitacional, fazendo uma pesquisa exaustiva de todas as possibilidades. No entanto, há tantas carências em Port-au-Prince neste momento que encontrar a fórmula perfeita de moradia é quase um milagre.
Para começar, dormi no Camp Charlie, o acampamento escandinavo sem vida que descrevi aqui. Depois, passei para o escritório dormindo três semanas em uma cama militar, sendo acordada por funcionários sem nenhuma noção de respeito às 6h30 da manhã e enfrentando filas imensas para tomar uma ducha fria de apenas cinco minutos.
Tentei também morar num hotel, mas me proibiram por questões de segurança. O aluguel era mais ou menos decente para uma quarto com televisão, banheiro próprio e frigobar mas o prédio tinha seis andares e o PNUD disse que estava fora de questão. Qualquer edifício com mais de quatro andares está fora de jogo na oferta e demanda de apartamentos na ONU, que, com razão, preocupa-se de manera maternal para evitar que outra tragédia ocorra no caso de outro terremoto.
Logo, voltei para a casa dos amigos com quem morava pre-terremoto. Arrumei tudo no armário e decretei que agora era definitivo. Éramos 5 morando numa casa desenhada para 3, mas com a falta de moradias sólidas e seguras em Port-au-Prince não nos queixámos de ao menos ter uma esquina segura para dormir.
Mas aí começaram os problemas.
Transporte: Os policiais e militares privilegiados que podem morar fora dos batalhões não trabalham na Log Base e por isso muitas vezes só conseguíamos carona até a metade do caminho. Por sorte, contamos com a boa vontade de amigos, que não se importavam em dar uma volta extra para nos deixar no escritório, ou com as meninas – Ana e Lavi, minhas novas companheiras de casa- que conseguiam pegar um carro emprestado pela noite. Claro que nesta história, os horários de entrada e saída ficaram cada vez mais relativos, já que com esse rodízio de motoristas as minhas prioridades nunca estavam no topo da lista
Contrato: Na casa em que estávamos, o contrato de aluguem venceu no dia 10 de janeiro, mas como o dono não pressionou e ninguém tinha pressa para assinar um novo contrato ficou por isso mesmo. Até que o dia 12 aconteceu, mudou tudo no Haiti e a casa ficou num limbo. Quando aceitamos morar lá não sabíamos desse impasse legal e tivemos que repensar os critérios. Todos temos contratos de trabalho diferentes, que começam e acabam em datas bem distintas, e a maioria dos que queriam viver lá iriam embora antes do final do contrato de aluguel. Por outro lado, a casa em que a Ana e a Lavi moravam está de pé ainda, precisando de apenas algumas reformas na pia do banheiro que caiu. Ao vincular-nos a um contrato na casa em que estavámos temporalmente vivendo, teríamos que abrir mão de fato de voltar a morar em sua residência anterior, maior, mais bonita e mais barata, com espaço suficiente para hospedar-me como nova inquilina também.
Rumores: Finalmente, começaram os rumores sobre a belíssima casa no Complex Comfort com dois quartos para alugar. Em menos de duas horas, durante uma festa brasileira, escutamos ao menos 15 militares dizendo que estavam pensando em se mudar para lá. “Pera lá”, dizíamos, “somos nós que estamos vivendo nesses dois quartos e já pagamos até aluguel”. “Tá, mas se sairem, o quarto é meu”, afirmavam.
Com todas essas incertezas, terminamos decidindo provar uma noite no barco. (veja blog anterior) O aluguel seria o mesmo que na casa, com três refeições incluídas, academia de ginástica, piscina, transporte de ida e volta e sem contrato de aluguel. Claro, tinha o problema do ar condicionado, de estar confinada, de já não poder ir jantar nos maravilhosos restaurantes de Petión Ville… mas qualquer opção tinha o seu preço.
Por via das dúvidas, cheguei até mesmo a tentar o outro barco ancorado para hospedar as agências, o Sea Voyager. Seria o meu niche natural, o PNUD inteiro está lá, e é um navio mais novo e mais elegante que o Ola Esmeralda, com uma comida gourmet bem típica de um barco coordenado pela World Food Programme. Mas não gostei. O Sea Voyager me lembra uma versão luxuosa do Camp Charlie, onde todo o mundo que você trabalhou o dia inteiro se encontra para continuar discutindo o trabalho. E pior, como a maioria chegou pós terremoto, quando sabem que você estava aqui antes do 12 fazem a maior cara de piedade e soltam a infame expressão: “pobrezinha!”
Então voltei para o barco do Minustah. Depois de ter vindo e saído tantas vezes, com mil complicações para fazer reserva e pagamento pelo simples fato de não ser Minustah (eles fazem pela Intranet e sao descontados do salário), acabei sendo conhecida como a troublemaker. Fui eu a primeira a exigir pagar os mesmos 20 dólares que os demais da Minustah, um direito verídico de uma só Organização das Nações Unidas, mas que os demais se recusavam a interpretar da mesma forma. Depois, consegui saltar o processo burocrático de agendar a minha estadia através da travel agent do PNUD, já que ela saiu de férias, não avisou, não fez a minha reserva e me deixou sem teto e desesperada por uma noite. Troublemaker é um apelido carinhoso ao final, porque apesar de me chamarem de “criadora de problemas” ao voltar para o barco na última quarta-feira, conferiram o meu nome na lista sem que eu tivesse que dizer um ai e fui recebida de braços abertos pela tripulação por ser parte da “família” Ola Esmeralda.
Se eu tinha alguma dúvida sobre a minha nova residência, ela foi embora automáticamente depois da última trapalhada para me estabelecer permanentemente no navio. Como sou “familia”, pedi um quarto maiorzinho dessa vez, para poder colocar toda a minha tralha e me sentir confortável nesse confinamento. Me deram uma cabine razoável, um pouco maior do que o que me deram da primeira vez que entrei no barco, mas com quatro armários para eu poder guardar todas as minhas coisinhas, que são muitas. No entanto, depois de colocar tudo no seu devido lugar, o mocinho vem me dizer que eu teria que mudar novamente porque não encontraram a chave para o quarto. Acho que o meu olhar de desespero foi tão grande que ele prontamente me assegurou que eu teria um dos melhores quartos do barco para evitar que eu assim abrisse o berreiro por ter que me mudar pela quinta? Sexta? Sétima? vez em menos de três meses.
Mas o sacrifício valeu a pena. Ganhei um quarto gigante (considerando o fato que estamos num barco), com os meus quatro armários, escrivaninha, frigobar, beliche e, o melhor, uma cama de casal. A melhor parte é, que se eu não decidir compartihar o quarto, jamais poderão colocar alguém no meu palácio do Ola Esmeralda. Já tem fila de gente torcendo para eu ir embora e esperando ficar com a minha suite presidencial, mas com todo esse conforto ao meu redor penso que por um bom tempo não mudo para lugar nenhum.
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