Quando disseram que um barco chegaria a Porto Príncipe para alojar os internacionais desabrigados e os expertos que chegaram de todos os cantos do mundo para ajudar na recuperação do Haiti, a gente achou que era piada. O Love boat, como ficou apelidado o possível navio-cruzeiro, seria a alternativa para a falta de hotéis e residências no Haiti pos-terremoto.
Rimos muito sobre as possíveis situações que surgiriam, um bando de internacionais tomando a sua cervejinha no final do dia na borda da piscina, jogando papo fora, rolando aquele clima, acabando-se nas pistas de dança, e dando a imprensão de que apenas 7km de travessia pelo mar poderia apagar da lembrança a destruição e o caos que continuavam a perdurar em terra adentro.
Mas a piada virou realidade e o cruzeiro chegou de verdade à Porto Príncipe. Melhor que isso, não apenas um, mas dois barcos ancoraram no mar caribenho para servir exclusivamente a comunidade internacional da ONU&Associados.
Primeiro chegou o do World Food Program/Programa Mundial de Alimentos, a 40 dólares por dia, com direito a cabine compartilhada (se houvesse falta de espaço), jantar e café da manhã e até um lanchinho devidamente empacotado para levar para viagem. Depois chegou a alternativa para dar uma solução aos funcionários da Minustah, muitos deles que perderam suas casas durante o terremoto. Como somos os sobreviventes dessa tragédia, ganhamos também um desconto especial, pagando 20 dólares pela noite apenas. Bom negócio ao final, ao considerar que depois do terremoto qualquer refeição num restaurante mais ou menos descente não sai por menos do que esse preço.
Os amigos começaram a ir e as fofocas se tornaram fatos reais. “É bonzinho”, disse o Brito, o tal militar que estudou comigo na mesma escola, “tem até água quente”. Sim, um luxo em tempos em que temos que passar meia hora, 45 m preciosos na fila para usar o banheiro da UNICEF, onde temos direito apenas cinco minutos de ducha gelada cada dia. “O ambiente é legal”, comentou o Manuel, um amigo da Guatemala. “Rolou até um churrasquinho na piscina no domingo”. A Oxana, uma amiga da Moldova e a Farah, da França, voltaram do barco do PAM maravilhadas, caminhando nas nuvens e com um sorriso de alegria. “Você tem que vir conosco”, ordenaram. Com toda essa mordomia, já não tínhamos mais como ignorar o convite para passar a noite no barco do amor.
Ontem decidimos deixar de fazer piada e conhecer finalmente o cruzeiro da Minustah.
Não dá para criticar sem conhecer todos os elementos, certo? Por isso, fomos lá, eu, Mariana-Tuga, Ana-Tuga, Chiara-Itália, Brito, um montão de brasileiros que acabaram de chegar para reforçar a missão, colombianos, gente do Benin, Ruanda, Croacia e outros tantos mais. Saímos às 18h, já que temos que atravessar uma zona perigosa de Porto Príncipe e como não há luz elétrica, nós internacionais estamos ainda mais vulneráveis aos ataques dos 4.000 prisioneiros que escaparam das prisões e outras gangues que existem por aí. O porto também ruiu, e para solucionar o problema os americanos construíram um píer improvisado onde dois barquinhos nos esperavam para nos levar para o nosso novo destino.
Eu já fiquei meio nervosa no caminho pensando na quantidade de homens armados, concentrados num mesmo lugar, com bebidas e poucas mulheres num ambiente fechado. Paranóias, apenas, porque o pior estava ainda por vir. Como o mar está muito sujo, peixes mortos e outras sujeiras entraram dentro dos tubos de refrigeração do navio, que usa a água do oceano, e entupiram todo o sistema. O jeito foi parar o ar condicionado, trocar as mangueiras e limpar os tubos. Isso também significou passar uma noite com um calor de mais de 50 graus e uma umidade insuportável. Por sorte, como o navio ainda não está lotado (a popularidade anda meio baixa), cada uma de nós conseguiu uma cabine sozinha.
A equipe, toda da Venezuela, parece que foi recém contratada para trabalhar nesse cruzeiro-estancado em Porto Príncipe. Como marinheiros de primeira viagem andavam mais perdidos do que nós. Uma das garçonetes do restaurante literalmente ignorava nossos pedidos desesperados por outro copo de água, servindo apenas os militares que sentavam na nossa mesa. Ela jura que não era de propósito, mas nós ficamos ressabiadas de todas as formas e soltamos um par de desaforos. Problemas do calor, que com certeza, altera os nervos.
Tirando esse fato, o jantar nem era tão ruim assim. Salada fresca, salaminho, bolo de chocolate, luxos que hoje em dia se tornaram quase impossível de se encontrar no mercado. Mas comer nessa sauna não era agradável. O Brito não agüentou. Fez o prato, começou a reclamar e foi lá trocar de roupa. Trocou a camiseta por uma regata, ninguém sabe ao certo se era por conta do calor mesmo ou para mostrar os braços bem trabalhados. Coisas do Brito. Procurando por uma brisa, saímos todos para o deck do barco, passando pela discoteca, tudo num estilo bem anos 70, quando o barco foi construído. Tetos baixos, quase esmagadores até mesmo para os meus 1m58,5, terminavam decontribuir com o ar claustrofóbico do barco. O sonho de nos refrescar na piscina também acabou ao deparar-nos com ela vazia, fruto também do problema gerado pela imunda água do mar.
Sem outras alternativas (academia, um dos nossos propósitos
de ir para o barco, estava fora de cogitação com esse calorzão), tentamos colocar o papo em dia, conhecer melhor nossos companheiros de barco, tomar uma cervejinha. Mas o calor persistia e nem um ventinho soprava. Isso porque levamos casacos e quase cobertores porque pensávamos que iríamos sentir frio. Que ironia! Com a moleza do corpo, não agüentei muito. Queria aproveitar o quarto sozinha para colocar o sono em dia. Outro reality check. O quarto estava um forno e nem a ducha semi-fria ajudou muito. Ao sair do banheiro já suava em bicas. Acordei às 3h, às 4h e finalmente às 5h50 quando tinha mesmo que acordar para tomar o café e estar pronta para embarcar novamente às 6h30 rumo ao trabalho, ainda mais cansada do que no dia anterior.
Moral da história: se a solução para os meus problemas for mesmo o barco do amor, tô ferrada!
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